1.9.14

Vertigens

- Respira fundo, não custa assim tanto dizê-lo...

Falhei.

- Boa! Agora já podes pôr os teus headphones.


(And then... You'll know)

A voz atinge-me sempre, play após play. O tom é perfeito, põe-me logo naquele mood mais profundo, mais sincero, mais verdadeiro.

Antes do drop, a música ainda é virgem. Como eu, está prestes a ser corrompida por um lado deliciosamente negro, e esse é o problema. É que sabe bem.

No fundo, todos temos consciência disso. Todos temos uma atração fatal pelo abismo, pela incerteza, pelo tudo-pode-acontecer, pelo dia inesperado ou pela noite da cegueira.

Tudo o resto é significado. Não é que seja pouco, nem pequeno, o valor do significado que atribuímos às coisas. Mas não passa disso mesmo - significado.

Não és Tu. Não é a Tua essência, não é o Teu momento de consciência mais longínquo e não é, certamente, Teu dever construir significados com outras pessoas, e esse é o problema. É que sabe bem.

Aqui, tal como na música, percebes que, mesmo corrompido, não deixas de reconhecer a substância primordial: a delicada e inocente voz. De tempos em tempos ressurge, como que a imortalizar a hipótese original. A ingenuidade é doce e nós adoramos mantê-la por perto.

- Então ainda assim admites que falhaste?

Sim, falhei. A música é um reflexo da minha história, também por outro motivo. Repara: se existe um paralelo tão evidente entre as notas desta melodia e tudo aquilo que me acontece, no presente e no passado intemporal, o que me leva a crer que no futuro não continuarei a verificar o mesmo padrão?

Porque se o padrão for padrão, a voz jamais se extinguirá, em absoluto. No máximo terá uma presença semi-ausente, ressurgindo ciclicamente como o mais resistente dos parasitas.


- Falhaste porque sabias que a voz não se extinguiria, ok... Mas sendo assim, porque é que te deixaste corromper?

...

Não é fácil explicá-lo. Há dias em que penso que foi o medo, outros em que aposto tudo na coragem. E depois há aqueles momentos em que desespero por não conseguir descortinar um certo e um errado.

- Agora é um desses momentos?

Sempre que sou introspectivo acabo com mais dúvidas do que no início da cadeia de pensamentos. Posso manter ou não a dúvida original, é indiferente... A mente culmina em outras questões, que me conduzem a novas ansiedades ou expectativas.

(inspiro...)

- Fala-me do motivo que te trouxe até cá. As vertigens...

(...expiro)

Desde que me lembro que tenho medo das alturas. Não é aquele medo-fobia, não é uma característica que me defina, simplesmente está lá e nota-se (eu noto pelo menos...). Estou com dificuldades em perceber se o medo provém da incerteza do abismo desconhecido, ou da certeza da zona de conforto. É este yin-yang que me fode a cabeça, esta aparente dicotomia sem síntese evidente.
Pensava que o medo de perder me tirava a ambição de ganhar. De certa forma, não estava errado. Só não estava é completamente certo, porque não há como estar.

Tento não pensar em momentos específicos do passado. Mas só me serve de anestesia. Recordar não é mais do que um acesso consciente àquilo que está tatuado no subconsciente.

(We kiss...)

O beijo na nuca, o bejio na boca, o peitinho. A voz, o sorriso parvo, o riso histérico. O cozinhar a dois, o comer fora, o comer porcaria. O filme no cinema, no portátil na cama, na nossa imaginação. A melhor das conversas, a pior das discussões, o fazer as pazes (mas primeiro fingirmos que estamos amuados).

Ficava aqui o dia todo, é como quando vomitas e não consegues parar. É um poço sem fundo, ou com limite a tender para o infinito das minhas entranhas.

- Aí tens a tua resposta...

Estou no ponto zero, entre a Saudade e o Sonho. Para trás vejo memórias até perder rasto e no horizonte estão possibilidades que se desvanecem pelo futuro a fora. Quanto mais distante está o passado ou o futuro, maior é a vertigem.

(Medo de viver a saudade. Coragem para seguir novos sonhos.
Coragem para viver a saudade. Medo de seguir novos sonhos.)

Intuitivamente, sei que o medo não me faz falta. Então, porque não algo do género:

Coragem para viver a saudade e para seguir novos sonhos.

Parece incompatível. Mas será que é?

1 comentário:

Sara disse...
Este comentário foi removido pelo autor.